"..."Crash" arranca de forma obssessiva, oferecendo um retrato absolutamente traumático da vida actual na sociedade norte-americana, particularmente na cidade de Los Angeles. É a visão apocalíptica de uma sociedade pós "11 de Setembro" gravemente doente, com a desconfiança a assomar a cada esquina, o racismo a explodir à mais pequena contrariedade, a violência a invadir cada centímetro da estrada, da casa, do jardim. Uma personagem dá a explicação metafórica, logo no início:
Em LA ninguém te toca. Nas outras cidades, caminhas pelas ruas e és tocado pelas outras pessoas. Aqui estás sempre por detrás de metal e vidro. Necessitamos muito desse toque, desse choque humano que nos faz sentir alguma coisa.
Após um acidente de automóvel, em consequência do qual aparece morto um jovem negro, as situações e personagens vão surgindo numa listagem de paranóia que inquieta até ao desespero. Etnicamente, há um pouco de tudo, e ninguém aceita o vizinho por ser "diferente" ou não falar correctamente o "americano". Há os jovens negros que não toleram os "brancos" e explicam que os autocarros têm janelas grandes para humilharem os "negros" que vão lá dentro; são eles que atacam o casal branco (Brendan Fraser e Sandra Bullock) ou atropelam um chinês, que transacciona "carne branca". Sandra Bullock não acredita na honestidade do serralheiro mexicano que lhe muda a fechadura de casa, grita-o bem alto à frente deste, que , momentos depois, é igualmente agredido por um iraquiano, tomado por árabe, dono de um pequeno comércio que é assaltado, e se vinga no homem que não lhe quis mudar a fechadura, por achar que a porta não aguentava a operação. Há um realizador de TV mestiço que é "assaltado" por dois polícias brancos, numa rusga de rotina, e vÊ a mulher ser sexualmente molestada pelo polícia "racista" (Matt Dillon), perante o olhar aterrado do colega deste que se recusa a voltar à vigilância de rua com ele, mas acabará por protagonizar um caso ainda mais grave, por medo, por paranóia, pela criação de um clima colectivo de psicose pura. Depois há os jogos de poder, a hierarquia policial, os insteresses políticos, o inspector (Cheadle),com um irmão drogado e uma mãe de rastos...O ambiente assemelha-se muito à antecâmara de uma guerra civil, com intolerâncias de parte a parte, brancos contra negros, iraquianos contra hispânicos, negros contra chineses, chineses explorando coreanos, um nunca acabar de azedumes e ressentimentos intimamente armazenados q1ue explodem à mais pequena faísca Uma humanidade raivosa e perdida?
Ora aí dá-se o volte-face de "Colisão". Quando o espectador começa a desacreditar do Homem, ou da honestidade do filme, este muda de registo, tal como cada personagem o pode fazer no seu dia-a-dia, e descobre o outro lado desta Humanidade complexa e contraditória que tem dentro de si os genes do Bem ou do Mal. O mesmo polícia "racista" é capaz de arriscar uma vida por uma mulher negra, o polícia "bom" afinal também se pode contagiar pelo terror quotidiano. O que está doente não são os homens, é esta sociedade que, em lugar de enaltecer e favorecer o que de melhor há dentro de cada um, se apraz em trazer ao de cima o que de mais primário e selvagem há no ser humano.
É evidente que, se lido doutra forma, este filme pode ser perigoso, desculpabilizando os actos individuais com base numa explicação colectiva: não há nada a fazer, o homem é mesmo assim, tão depressa é um assassino como um anjo. Mas o que julgo estar mais certo como interpretação é uma crítica a um sistema político, social, económico e educacional que condiciona desde criança cada um de nós, incutindo o medo, colocando na mão de cada cidadão uma arma de defesa pessoal e, na cabeça, uma sinalização de intolerância que instiga à violência. São preconceitos e ideias feitas que fazem de cada um de nós potenciais perigos para os outros. O que fica exemplificado de forma notável numa conversa entre um produtor branco e um realizador negro, quando o primeiro pede para repetir uma cena porque uma personagem negra não falou suficientemente "à preto", esquecendo-se que tem à sua frente um negro que afinal, não fala à "preto".
Refira-se ainda a excelência de toda a representação, com particular destaque para Matt Dillon, no polícia racista que tem em casa um pai doente a que se dedica com carinho, e a quem a indiferença dos serviços de saúde revolta. A revolta e a raiva coabitam diariamente com estes seres frágeis que querem demonstrar uma força que não têm e apenas revelam as fraquezas de que estão possuídos."
2 comentários:
muito muito bom comentario...gostei!! :D
bom comeco
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